* Evelin Ventura *
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A chuva caía abundantemente no chão do pátio da escola.
Um vulto caminhava lentamente, pisando todas as poças, enlameando as suas botas altas, pretas e gastas. Um vulto de estatura baixa, de longos cabelos negros que se colavam à face pálida de onde surgiam uns belos olhos cor de mel, que eram porém a única doçura naquela figura escura e triste.
Ao entrar no edifico da escola secundária, poucos eram os que notavam a sua presença, mas a jovem de 17 anos continuava o seu caminho, cambaleando por entre a multidão risonha e barulhenta, para se ir refugiar algures nas trevas do auditório da escola. Lá decorriam as audições para uma peça de teatro, uma peça que falava da alegria, do amor e da amizade. Porém nada disto interessava à jovem que lentamente se recostou numa das cadeiras vermelhas, e, colocando o seu leitor de cds portátil em funcionamento, deixou-se levar pela música.
No final das audições, um rapaz vestido de preto e com mais brincos no seu corpo do que a própria natureza permitia aproximou-se da cadeira onde a jovem havia adormecido.
- Evelin! – Chamou ele com a sua voz rouca mas ao mesmo tempo sedutora – Evelin! – Repetiu ele esforçando um pouco mais a voz.
A jovem estremeceu, abrindo rapidamente os olhos e deixando escapar um sorriso.
- Paulo… – Proferiu ela na sua voz quase inaudível -…já sabes se foste seleccionado?
O jovem baixou o seu olhar.
Evelin segurou-lhe a mão carinhosamente:
-Não fiques desanimado…eles não sabem distinguir um bom actor de… - Evelin olhou para o palco onde uma bela rapariga loira, de olhos azuis, ridiculamente vestida com um conjunto cor-de-rosa mostrava o seu maior sorriso para o realizador da peça, agradecendo-lhe o facto de a ter escolhido para sua protagonista.
Paulo soltou uma pequena gargalhada:
- Evelin…vá lá achas que estou preocupado por o grupo dos betinhos e das bonequinhas ter sido escolhido?! Ainda bem que eles não gostaram da minha representação, já viste o que seria ter de conviver mais três horas por semana com aquela gente?!
Paulo Nogueira soltou três gargalhadas curtas, como se o seu riso saísse soluçando.
Evelin forçou um sorriso e levantou de novo os seus olhos para a jovem loira:
- Havias de gostar que eu fosse como ela…bonita, bem vestida, sorridente…- Evelin levantou-se baixando o olhar - …sociável.
- “Eve”… - Paulo segurou nos ombros da jovem -…eu não quero saber dessas raparigas que vestem diariamente uma sorridente máscara de maquiagem, eu gosto é de ti Evelin, tu és bonita à tua maneira, não preciso de mais nada para ser feliz.
Evelin levantou finalmente o seu triste olhar encarando Paulo:
- Sempre tens a tua banda que é muito melhor que o teatro! – Sorriu a jovem.
Nesse momento a rapariga loira aproximou-se dos dois:
- Olá Paulinho! – Disse ela esboçando o seu mais perfeito sorriso. Depois espreitou por de trás do ombro do jovem a fim de avistar Evelin – E tu…hum… Elisa…
- Evelin… – Corrigiu Evelin sem nunca a olhar nos olhos.
- Sabias que o teu namorado Elisa…
- Evelin… – Corrigiu a jovem novamente.
-…o teu namorado é um grande actor! Eu estive a falar com o realizador e pedi-lhe que ponderasse mais acerca do desempenho do Paulo e ele concordou em colocá-lo na peça novamente!
- Estás a falar a sério Cecília?! – Perguntou Paulo não escondendo o seu entusiasmo.
- É claro que sim querido! Não é óptimo?! Tu e eu vamos representar lado a lado na peça do final do ano! – Gritou estridentemente Cecília.
- Estou sem palavras “Céci”! Isso o demais mais demais do mundo!
Cecília sorriu apesar de não ter percebido o que o jovem quis dizer com aquilo. De seguida olhou para Evelin, que havia sido esquecida por ambos:
- Hum…só tenho pena que os bilhetes para o espectáculo do final de época já tenham acabado… - Disse Cecília fingindo a sua tristeza – Desculpa Elisa, mas parece que não vais puder ver o teu namorado a actuar…não é que isso te incomode é claro, afinal não dás valor a coisas que envolvam cultura. – Cecília sorriu e saiu do auditório.
- “Céci”?! – Disse Evelin indignada saindo também porta fora.
Paulo correu atrás dela:
- Evelin! – Gritou ele correndo para alcançar a namorada – Evelin espera! – Disse ele agarrando-lhe um dos seus frágeis braços. – Evelin que se passa contigo? Não compreendo! Não queres que eu represente na peça?! Não queres que faça algo que sempre gostei de fazer?
Evelin soltou-se bruscamente:
- Quem me dera que fazer o que gostas não envolvesse passares mais tempo com a Cecília Costa! Eu odeio-a Paulo e tu sabes disso! Achas que é fácil para mim ver-te a trocar sorrisos com ela?!
- “Eve”! Eu odeio a Cecília tanto como tu e sei que é difícil para ti mas faz esse sacrifício… por mim... – Paulo beijou a testa de Evelin - …pelo nosso amor.
Evelin sorriu e baixou de novo o olhar.
- Se quiseres aparece hoje á noite no “Flash”, vou estar lá com o pessoal da banda. – Disse Paulo afastando-se pelo corredor deixando Evelin sozinha.
A jovem olhou à sua volta, observando os alunos que passavam contando as aventuras diárias, alegrando-se por se aproximarem as tão desejadas férias de Natal. No seu interior Evelin também se alegrava com o final das aulas, mas não por puder passar todo o tempo sem fazer nada, alegrava-se porque eram nessas semanas que não tinha de lidar com todas aquelas pessoas que ela tanto odiava, as pessoas que a ignoravam, que desconheciam a sua existência e que contribuíam para o seu desaparecimento total. Paulo era o único que se preocupava com ela, o único que a fazia sentir-se amada. Haviam crescido juntos pois sempre moraram no mesmo prédio. E desde sempre Evelin o amara com todo o amor que não podia repartir por amigos. No fundo Paulo era a única pessoa no mundo sombrio de Evelin.
Evelin caminhou lentamente para casa. A chuva continuava a cair ignorando também a presença da jovem, era como se toda aquela cidade, a que Evelin chamava de “Cidade Cinzenta”, fechasse os olhos à passagem da jovem.
Entrou no seu prédio cujo exterior estava manchado com o fumo, subiu de elevador até ao 6º andar, e entrou no apartamento 6º esquerdo.
Lá dentro tudo estava escuro, e a jovem Evelin não se preocupou em acender a luz ou em abrir as janelas, apenas se dirigiu à cozinha onde os pais, Álvaro e Cristina Ventura, haviam deixado o habitual bilhete a informar onde estava o jantar da jovem.
A jovem rapariga raramente estava com os seus pais que saíam para trabalhar antes de Evelin acordar e chegavam depois desta já se ter deitado. O pai geria uma empresa de cremes corporais e a mãe, auto denominava-se de “consultora de moda”, mas não era mais do que da gerente de uma loja de roupa que passava o dia dar conselhos a mulheres ricas e gordas sobre o que vestir.
Evelin nem precisou de ler o pedaço de papel escrito á pressa, arrancou-o da porta do frigorífico e deitou-o no lixo. Depois dirigiu-se ao micro-ondas de onde retirou um pacote que guardava o que restou de uma refeição encomendada por telefone e atirou o pacote para junto do bilhete dos pais. De seguida dirigiu-se ao seu quarto.
Eram 17 metros quadrados de posters de grupos de heavy metal entre eles uma foto da banda na qual o seu namorado era baterista.
Evelin olhou-se ao espelho (coisa que raramente fazia), pensou em arranjar-se para aquela noite, em pentear o cabelo, em vestir algo melhor, em pôr-se bonita para Paulo, afinal ele merecia.
A jovem abriu o armário onde descansavam solitárias seis camisolas e três pares de calças pretas. Evelin suspirou e retirou a sua camisola mais “provocante”, que, ao contrário das outras, mostrava um pouco dos seus ombros brancos. Depois penteou os longos cabelos negros que lhe davam pela cintura. Atreveu-se mesmo a esgueirar-se até ao quarto dos pais e colocar um pouco de brilho nos lábios com um gloss da sua mãe.
“Se a minha mãe me visse agora” – Pensou ela ao sair de casa.
A chuva tinha parado quando Evelin alcançou o letreiro vermelho onde se lia “Bowlling Flash”. Era o local de entretenimento preferido da jovem e apesar de se encontrar num recanto da Cidade Cinzenta estava sempre repleto de jovens, e essa noite não era excepção.
Evelin procurou o seu namorado numa das pistas de bowlling, mas avistou apenas Carl B., o vocalista da banda com a sua namorada daquela noite.
- Carl! – Chamou Evelin acenando.
O vocalista levantou-se espantado com a presença da jovem.
- Evelin…por aqui hoje? – Perguntou ele um pouco nervoso.
- Sim…vim encontrar-me com o Paulo como de costume… - Respondeu ela estranhando o comportamento de Carl.
- O Paulo! O Paulo… hum – Carl baixou o olhar e Evelin não deixou de notar um sorriso de troça vindo da namorada do musico - …bem Evelin…o Paulo ele saiu… - Concluiu Carl.
- Boa noite Evelin! – Cumprimentou a namorada de Carl com o seu ar trocista – O que o Carl queria dizer é que o Paulo está lá fora à tua espera.
Carl olhou a namorada com espanto, mas mal teve tempo para responder pois Evelin já se havia dirigido para a saída.
Ao fim de alguns segundos à sob a pesada chuva que recomeçara a cair Evelin avistou Paulo de costas, mas quando se aproximou parou bruscamente como se uma barreira invisível a tivesse detido e uma faca afiada a tivesse atravessado. Uma lágrima escorreu pela sua face ao ver o que os seus olhos não queriam ver e ao sentir o que o seu coração solitário nunca pensou sentir. Paulo estava ali, poucos metros à sua frente beijando Cecília, a mesma Cecília que ele dissera odiar.
Evelin virou costas e correu o mais que pôde até alcançar a entrada do seu prédio. Ao passar pelo espelho do seu quarto limpou violentamente o gloss dos seus lábios e encolheu-se num canto escuro do seu quarto chorando a sua triste sorte.
No dia seguinte, ao entrar na escola Evelin deparou-se com Cecília e o seu grupo de amigas. Cecília soltou uma forte gargalhada ao avistar Evelin, esta olhou-a friamente.
- Lamento Elisa… - Disse Cecília por entre a sua gargalhada -…mas há coisas que são boas de mais para ti!
Evelin parou escutando as gargalhadas ruidosas do grupo das “bonequinhas”.
- O meu nome é Evelin! – Gritou ela avançando com toda a sua raiva para Cecília que soltou um grito.
Uma multidão de jovens juntou-se para ver as duas raparigas lutarem, uns aplaudiam outros gritavam, e por fim Paulo correu para elas alarmado por todo aquele alarido.
- Evelin pára! – Gritou ele tentando furar por entre a multidão.
Quando alcançou as jovens agarrou em Evelin enquanto Cecília ficara no chão soluçando ofegantemente.
- Evelin estás louca?! – Gritou de novo Paulo.
Evelin conseguindo por fim libertar-se olhou-o com desdém:
- Como é que foste capaz de me fazer uma coisa destas?! Eu vi-te ontem à noite com ela! – Gritou Evelin por entre lágrimas.
Nesse momento a discussão foi interrompida por um professor que assistiu a tudo.
- Menina… - Disse ele apontando para Evelin - …faça o favor de se dirigir comigo ao gabinete do director.
Evelin limpou as lágrimas e caminhou cabisbaixa à frente do professor, deixando toda a gente espantada com aquela situação.
O director da escola, um homem gordo cuja face parecia fundir-se com o pescoço, andava de um lado para o outro na frente de Evelin.
- Menina Evelin Ventura… – Disse ele por fim -…será que me pode explicar o que se passou?
- Eu tive uma discussão que não acabou bem com a Cecília… - Murmurou Evelin sempre com os olhos fixos no chão.
- Bem me pareceu que a culpa tinha sido sua. – Disse ele.
Evelin levantou rapidamente o olhar:
- Mas não foi! Ela é que me provocou! – Gritou Evelin.
- Menina Evelin…- O director nunca perdia a calma ao falar -…pelo que me consta dos seus registos… - Disse ele consultando umas folhas -…a menina anda no 11º ano, e poucos são os professores que se podem alegrar com a sua adorável presença nas aulas. – Afirmou o director ironicamente – Também não ouvi falar das suas notas excelentes pelo que devo presumir que não existem. Sendo assim, e tendo em conta que a menina Cecília Costa é academicamente o seu oposto… - O director estendeu um papel a Evelin -…a menina está expulsa!
Evelin estremeceu com esta afirmação, mas não pronunciou uma única palavra e saiu silenciosamente do gabinete.
Já em casa Evelin esperou pelos pais, e as horas que outrora demoravam a passar desta vez pareciam ter acelerado.
Quando Álvaro e Cristina entraram em casa Evelin respirou fundo e apresentou-lhes o papel da sua expulsão.
Cristina irrompeu em lágrimas e Álvaro olhou furiosamente para a filha.
- Evelin. – Disse ele na sua voz grave e firme. – Já para o teu quarto e só de lá sais quando eu te chamar.
Evelin não contestou e encaminhou-se para o quarto.
Uma hora passou até Evelin ouvir a voz de seu pai a chama-la.
A jovem foi encontrar os pais sentados na mesa da cozinha. O pai apontou-lhe uma cadeira e Evelin sentou-se obedientemente.
- Evelin… - Começou Álvaro - …estamos muito desapontados contigo! Nós pensávamos que te tínhamos dado a educação devida, pensávamos que tudo estava bem na escola, e afinal…estivemos a investir em ti para nada! – Gritou ele.
Evelin levantou-se bruscamente:
- Eu não sou nenhum dos teus produtos em que investes! Eu sou uma pessoa! Sou vossa filha! Expliquem-me como é que querem dar-me educação se passo semanas sem vos ver! – Gritou Evelin indignada.
Cristina voltou a desfazer-se em lágrimas.
- Evelin! Já chega! – Impôs-se Álvaro – Eu e a tua mãe decidimos que enquanto não arranjarmos uma escola que te aceite vais para Celtin morar com a avó Camila.
- O quê?! – Surpreendeu-se Evelin – Com a avó Camila?! Em Celtin?! Naquele fim de mundo campestre?! Onde não há bowlling e dificilmente há televisão?! Vocês não me podem fazer isso!
- Podemos e vamos fazê-lo Evelin. Faz as malas pois amanha bem cedo partes para Celtin.
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